quinta-feira, 23 de outubro de 2008

EPISTEMOLOGIA DE UM SOFISMA




Por: Josafá Batista

É um fenômeno absurdo, mas recorrente. Vejam: A maioria das críticas não-acadêmicas ao capitalismo, especialmente daqueles que o defendem, costuma comparar o modelo aplicado em uma região e um período histórico a outro modelo ideal, geralmente o de outro país.

Parte-se do princípio que o modelo “lá” deu certo por razões históricas: pela ética do governo, pelo empreendedorismo dos seus empresários, pela superioridade moral do seu povo. A mesma razão presta-se a explicar a situação “cá”: pusilanimidade dos políticos, preguiça da população, “jeitinhos brasileiros” etc.

Antes dessa crise a referência para a comparação eram os Estados Unidos, mas, com a bancarrota do laissez-faire, a utopia burguesa costuma situar-se onde sempre esteve antes da ascensão do Império hegemônico: “nas nuvens”, expressão de Karl Marx que literalmente significa “no mundo das idéias” ou “em condições ideais”.

Com o socialismo - e aqui vem o “fenômeno absurdo” - essa lógica se inverte: todo e qualquer erro, de avaliação ou de política pública, cometida por um país socialista torna-se imediatamente “problema estrutural do socialismo”.

A Comuna de Paris levanta-se em armas contra os políticos franceses na guerra franco-alemã. Guerra civil? Não, o Socialismo que é genocida por natureza. A URSS de Stalin reprime manifestações por um “socialismo não-burocrático” na ex-Tchecoslováquia. Erro de Stalin? Não, o Socialismo que é autoritário. Chávez fecha um canal de TV que participou de um golpe armado com apoio da CIA. Destempero do venezuelano? Não, o Socialismo que é antidemocrático.

Percebem a diferença?

A regra é mais ou menos esta: na vigência do Capitalismo, em que dirigentes de Estado e empresários pertencem à mesma classe social, os crimes e erros são meros desvios específicos, locais; na vigência do Socialismo, o erro é de todo o sistema, e, como se não bastasse, é atemporal (vale para todas as épocas).

Vamos a um exemplo prático, a política do “realismo socialista” adotada pela URSS após o 1º Congresso da União dos Escritores Soviéticos, realizado de 17 de agosto a 1º de setembro de 1934.

Vale lembrar que antes mesmo da Revolução de 1917 as vanguardas culturais já assumiam posicionamentos frente à luta que estava posta. De um lado a monarquia czarista, sustentada politicamente pela Igreja Ortodoxa e pela aristocracia, adotava um padrão estético acadêmico; de outro, o novo grupo político propunha uma renovação geral e trazia consigo uma revolução cultural e estética.

Sendo necessário fazer a propaganda revolucionária em um país com uma população majoritariamente analfabeta ou de baixo nível de escolaridade, com deficiências materiais no campo das gráficas disponíveis, optou-se por cartazes com poucas palavras, poucas cores (basicamente, preto, branco e vermelho), elementos geométricos simples e uma linguagem icônica.

Em tais condições históricas floresceria espontaneamente o “realismo soviético”, mantendo-se posteriormente por razões também políticas: no contexto da Guerra Fria era crucial para a URSS adotar uma estética artística potencialmente oposta à cultura de massas que virava norma nos EUA. Naturalmente, a própria cultura de massas (que hoje homogeneizou a mídia mundial) é também histórica. Nasceu no contexto da Grande Depressão de 1929).

Concordo com Aldo Nascimento, do blog Língua, sobre o erro que foi a importação do modelo soviético pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), que não foi o único a fazê-lo. Partidos comunistas da China, Coréia do Norte, Vietnã, Laos, Camboja, Cuba, Nicarágua e outros países fizeram o mesmo.

Entretanto, até esse encartilhamento precisa contextualizar-se no movimento real da história: no pós-1ª Grande Guerra Mundial, com ascensão de forças hostis na Europa e no outro lado do Atlântico, a orientação da 3ª Internacional (reunião formada pelos partidos comunistas de vários países) foi desesperada: todos os partidos-membros deveriam seguir as mesmas estratégias de Moscou. Em 1939, quatro anos após o Congresso de Escritores, rebentaria a 2ª Guerra Mundial e o “realismo socialista”, que já era regra, virou norma.

Uma atitude equivocada, evidentemente. Porém, imaginem o peso, naqueles tempos, de algum partido afirmar-se "comunista” e rejeitar a estratégia de guerra adotada globalmente em uma cúpula mundial...

Como se vê o “realismo socialista” não é, nunca foi, ação “do Socialismo”, este espectro tão caluniado, por uma razão muito simples: Socialismo, assim como Capitalismo, são sistemas político-econômicos fundados em realidades locais, distintas no tempo e no espaço, moldadas por subjetividades e valores sociais específicos.

O “realismo socialista” foi primeiro uma decisão política específica, estendida mais tarde ao resto do mundo em um contexto geopolítico de guerra, não apenas da 2ª Grande Guerra, mas principalmente da Guerra Fria. Vale lembrar ainda que o “realismo socialista” foi um dos motivos que levaram à criação da 4ª Internacional, formada por dissidentes que consideravam o modelo soviético um “capitalismo de Estado” (com o que estou de acordo).

Naturalmente, conhecer tais detalhes nos garante um grande aprendizado da história do mundo no turbulento Século XX. E também permite compreender melhor erros de avaliação muito próprios da sua época, local, condições políticas, sociais e econômicas.

Por isso mesmo transformar tais equívocos específicos em características imutáveis do Socialismo é não só uma grande desonestidade intelectual, mas a manifestação da posição de classe de quem o faz. Afinal, se não nos mobiliza a produção de miséria em escala industrial, ameaça de catástrofe ambiental global, crise sistêmica internacional, concentração de renda, corrupção generalizada, multiplicação da miséria, alienação moral e outros crimes inerentes ao capitalismo, é porque já nos acomodamos muito bem, obrigado, em nossa função de protetores desse regime totalitário (!) que aquece o nosso quartinho dos prazeres...

... enquanto o resto da casa pega fogo!

A ilustração acima é do poeta soviético Vladimir Maiakóvski, a quem o também poeta e tradutor Haroldo de Campos, em comentário ao livro "Maiakóvski - Poemas", (Ed. Perspectiva, 1982) assim definiu: "Maiakóvski deixa descortinar em sua poesia um roteiro coerente dos primeiros poemas, nitidamente de pesquisa, aos últimos, de largo hausto, mas sempre marcados pela invenção. 'Sem forma não há arte revolucionária', era seu lema, e nesse sentido Maiakóvski é um dos raros poetas que conseguiram realizar poesia participante sem abdicar do espírito criativo".

Para Aldo Nascimento, entretanto, "se tivesse nascido no berço da economia de mercado, a arte de Vladimir Maiakóvski teria seguido outro destino".

Aposta perigosa. Não há como saber, sequer, se Maiakóvski seria Maiakóvski se tivesse nascido em outro país, outro contexto social, político e econômico, pela óbvia razão de que são sobre esses contextos específicos que erguem-se as subjetividades individuais.

Mas é compreensível. Afinal, segundo o professor, "o neoliberalismo permite ao indivíduo o que comunistas não permitiram na história: a liberdade de criar" (inclusive sofismas, acrescento).

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

RISCOS DE UMA APURAÇÃO APRESSADA

Por: Josafá Batista
Em 17 de junho desse ano o jornal El Deber, de Santa Cruz de La Sierra (Bolívia), publicou matéria especial sobre um documento atribuído ao Movimento al Socialismo (MAS), partido de Evo Morales. O documento denominava-se "Guía de Acción Política de Orinoca Para Los Compañeros Revolucionarios del MAS y Sus Aliados".

Na verdade o escrito, sem assinatura e sem nomes de responsáveis, vinha circulando há pelo menos um ano em fóruns e blogs da internet como o Forum Univision, E-Foro, Autonomía Ya! e outros. Ele também foi citado em matérias dos jornais La Razón e El Nuevo Día.

Mas foi no jornal El Deber que pela primeira vez o autor da matéria resolveu ouvir os representantes do MAS. Assim, a jornalista Carla Paz Vargas pôde escrever que o MAS atribui a autoria do documento aos Comitês Cívicos da chamada "Media Luna" (grupo de governadores bolivianos que fazem oposição a Evo Morales), que assim criaram factóides na imprensa para justificar "paros civicos" realizados desde 2007.

Portanto, um boliviano que chegasse ao Acre - da oposição ou da situação - e lesse o diário Página 20 não entenderia o conteúdo das matérias Exército boliviano emite mandado de prisão contra jornalista acreano e Bolívia se encontra à beira do abismo, publicadas ontem.

Primeiro porque, como vimos, o "plano" citado na matéria não é exclusivo há pelo menos um ano e meio...

Segundo porque é no mínimo um péssimo jornalismo validar o conteúdo de um documento cuja origem não se conhece ao certo, especialmente quando não é possível ouvir os "acusados" - na verdade é possível, basta entrar em contato com os dirigentes do MAS pelo e-mail fornecido no site oficial do partido.

Terceiro, e mais grave, é porque o documento é falso. Para constatar isso você, leitor, precisará obtê-lo clicando aqui. Abra e observe: o suposto "carimbo" onde está escrito CONFIDENCIAL é na verdade uma imagem sobreposta ao texto, isto é, uma arte feita no computador. Não é um carimbo. Outra arte foi feita no símbolo do MAS, grafado na parte superior direita de cada página, e na foto esquisita do presidente Evo Morales. Observe que a foto está em preto-e-branco enquanto o resto do documento é colorido pelas imagens inseridas sobre o texto.

Todo o documento foi, portanto, editado.

Tem mais. Esse documento está hospedado em um jornal venezuelano, o Noticiero Digital. A imprensa acreana não deve lembrar, mas o Noticiero foi um dos jornais que recebeu dinheiro da Embaixada dos Estados Unidos na Venezuela durante a tentativa de golpe de Estado a Hugo Chávez. Confira aqui.

A pergunta que não quer calar, portanto, é: o que um documento "incriminador" do MAS estaria fazendo no site de um jornal de outro país? "É parte de uma notícia!", poderíamos pensar. Mas não é. O Noticiero jamais tocou no assunto.

Mas nada nas duas matérias do Página 20 poderia ser tão grave quanto o suposto "plano militar elaborado para dar sustentação aos aliados de Evo Morales" (foto). Além de não ter origem comprovada, o documento trai a si mesmo e dá várias pistas sobre sua real origem.

Clique na foto para ampliar e observe a primeira seta, da esquerda para a direita.

As expressões "Negociación IDH, Nueva CPE y Estatuto Autonómico" não são reivindicações dos partidários de Morales, mas do Consejo Nacional Democratico (Conalde), instituição formada pelos comitês cívicos dos Estados "autonomistas". Essas reivindicações, que o governo Morales considera golpistas, foram também condenadas pela União de Nações Sul-Americanas (Unasur) que foram tácitas em afirmar que não vão reconhecer "tentativas de golpes civis".

Veja o comunicado aqui.

Outra curiosidade do suposto segundo "documento" é o uso das expressões "paros y bloqueos" para designar as ações terroristas, uma vez que ambas designam as ações dos próprios comitês. Em um desses "bloqueos" os autonomistas seqüestraram um avião do Exército boliviano com metralhadoras, granadas e outras armas de uso exclusivo das Forças Armadas. Essas armas, segundo os resultados dos primeiros laudos cadavéricos publicados nos jornais bolivianos, foram usadas no massacre de camponeses ocorrido no dia 11 - e não 12 - de setembro.

Todas essas ações aconteceram criteriosamente dentro dos prazos determinados no "plano militar", de forma minuciosamente sincronizada entre os departamentos "autonomistas". Parte desse cronograma terrorista é reconhecido inclusive pelo próprio jornalista Alexandre Lima, autor de uma das matérias e que se diz perseguido pelo governo boliviano. Confira:

"Os conflitos dos últimos meses na Bolívia ocorreram coincidentemente no mesmo período em que o governador de Pando, o autonomista Leopoldo Fernández, se reunia com a população local para aprovar o novo estatuto autonômico de Pando. Nessa mesma época, Fernández também negociava a liberação do IDH (impostos retirados pelo governo Evo Morales), Constituição Autonomista de Estado (CPE) e o Referendum Revocatório. A autonomia de Pando foi aprovada entre os meses de julho e agosto, mas não aceita pelo governo de Evo Morales. Os conflitos eclodiram novamente e pontes foram obstruídas, impedindo a ligação terrestre entre Cobija e Acre e fronteiras com a Argentina. Ao mesmo tempo, também pipocaram confrontos na parte central da Bolívia. Em Santa Cruz, por exemplo, ocorreram várias mortes e dezenas de pessoas foram presas." - Página 20, "Governo contra autonomistas", in Bolívia: à beira do abismo. 14.10.2008.

A matéria completa do Página 20 está disponível aqui.

E a expressão "agitar occidente", usada no documento?

Quem conhece a geografia boliviana (confira nesse mapa) sabe que essa expressão jamais poderia se referir ao ocidente pandino: o Estado "termina" na fronteira com Assis Brasil. A oeste de Cobija só há pequenas cidades campesinas como Santa Cruz (não confundir com Santa Cruz de La Sierra), Floresta e Bolpebra, que devido à distância e imensa dificuldade de acesso por terra ou água dificilmente poderiam ser "agitadas" da forma citada no documento.

O "occidente" citado é uma alusão aos Estados (Departamentos) com maioria indígena, favoráveis a Evo Morales. Os Estados com maioria oposicionista ficam no "oriente", isto é, no leste boliviano. Assim, a expressão "agitar occidente" no documento significa provocar os camponeses para que se manifestem e assim iniciar uma sangrenta guerra civil que causaria (pelo cronograma do documento) um golpe de Estado ou o assassinato do presidente Morales.

Por que o assassinato de Morales? Porque o documento, como acabamos de ver, tem perspectiva nacional, e não departamental (estadual).

Para terminar essa excessiva postagem de hoje quero finalizar dizendo que Alexandre Lima, o jornalista entrevistado na primeira e autor da segunda matéria do Página 20, não teve prisão decretada.

Quem o Exército procura é um boliviano chamado Amín Alejandro Farah Ferreira. De acordo com Lima, Farah Ferreira teria sido o seu "procurador" em um contrato de publicidade firmado com o Governo pandino em 2007. A acusação é superfaturamento de dinheiro público. De acordo com o governo boliviano, O Alto Acre, na época um semanário, teria recebido o equivalente a R$ 9 mil em dois meses de serviço.

Para ver mais detalhes dessa transação clique aqui.

Seriam Alejandro e Alexandre a mesma pessoa? Por enquanto, não sei.

E vocês?